sexta-feira, 30 de abril de 2010

Órfãos da guerra


Eles não sabiam a idade, o nome dos pais, alguns não sabiam nem o seu próprio nome. São vítimas de uma guerra que já completa mais de 40 anos. Os pais foram assassinados, decapitados e castrados. E os filhos foram esquecidos, no sul de um país com maioria islâmica e que não consegue conviver de forma pacífica com o diferente
As 30 crianças e adolescentes do Sudão que visitaram por dois dias Ijuí, na quarta e quinta-feira deixaram para trás uma história de grande sofrimento. Se não bastasse a tragédia de perder a família, eles convivem com a total falta de condições básicas de sobrevivência como água potável, luz e saneamento. O maior país da África junto com a Somália apresenta os piores índices de qualidade de vida. Mesmo com o rio Nilo, que atravessa o território sudanês, sendo fonte de irrigação e energia elétrica, a população rural, por estar sofrendo com a migração, não consegue trabalhar a terra, agravando o drama da fome.
Estima-se pelas Nações Unidas que entre 200 mil a 300 mil pessoas morreram em Darfur desde que começou o atual conflito – não é o primeiro - entre o governo, as milícias rebeldes e população civil em 2004. Cerca de 4,7milhões de pessoas foram diretamente atingidas, em uma população de 6,2 milhões. Somente em 2008, 310 mil pessoas foram deslocadas do interior e procuraram acampamentos no Sul, em um total de 2,7 milhões de refugiados dentro do próprio país. Metade dos afetados pelo conflito são crianças. Destes, 700 mil têm menos de cinco anos e cresceram conhecendo nada além de conflito e violência.
Na tentativa de mudar um pouco essa realidade, que pelo jeito imobiliza os líderes das grandes nações e a comunidade internacional, o pastor Marcelo Belitardo, da Missão Cristã Mundial dirige desde julho do ano passado um orfanato na localidade de Torit. Ele explica que o Sudão é um dos países mais pobres do mundo e os cristãos são os que mais sofrem. "Os combatentes desalojam a população civil, roubam os rebanhos e incendeiam vilarejos. Após a destruição, crianças ficam vagando sozinhas em fuga desesperada", relata. "Nós mantemos três casas onde abrigamos 150 órfãos dando a eles cuidado, moradia e alimentação e, principalmente, levando-as a conhecer o amor de Jesus", conta. "Somos a primeira e única organização no Sul do Sudão que está fazendo algo", ressalta.
Destes 150, 30 estão no Brasil e estiveram em Ijuí. Ficarão 15 dias, passeando pelo país e visitando igrejas que apoiam o projeto, como é o caso da Comunidade Cristã de Ijuí "Queremos mostrar a realidade de lá e que podemos fazer algo", prega o pastor Fabio Hockmulller. Nancy, 14 anos, não esconde a felicidade, esperando para brincar na cama elástica, um dos diversos brinquedos espalhados pela Afhocai para receber as crianças órfãs na quarta-feira. Além do dialeto natal, o idioma é o inglês. Ao ser perguntada se queria participar de uma entrevista, respondeu com largo sorriso. "Yes, after jumping". Foi preciso esperar, pois era a segunda vez que ela tinha essa divertida oportunidade. A primeira foi em São Paulo há dois dias. "I love Brazil", afirma. Ela contou que o que mais lhe surprendeu aqui foi o clima. "The weather". Nesta época, a temperatura no Sudão chega a 48°, sendo a média daquele país tropical árido de 38°C entre março e junho.
A viagem até o Brasil durou sete dias. Primeiro, eles partiram até a capital do Sudão do Sul, Juba. Depois, o destino foi a capital da Uganda Kampala e Nairobi, no Quênia. Foram cinco dias por terra. Depois, o grupo seguiu de avião até Jonhanesburgo na África do Sul. De lá, até São Paulo. Mas até a viagem iniciar foram cinco meses de trabalho árduo para descobrir informações sobre as crianças. "Tivemos que calcular a idade aproximada e encaminhar os documentos para a viagem, tanto que todos têm na certidão 1° de janeiro como dia do nascimento".
A viagem também foi providencial para retirá-los do sul do país, pois, apesar de pouco noticiado mundialmente, continua com fortes ofensivas milicianas. "O acordo de paz em janeiro de 2005 não funciona na prática e está mais precário agora às portas do referendo sobre a independência da região marcado para 2011”, lamenta.

Um país dividido pela intolerância
Depois da dominação inglesa, a unificação de diferenças étnicas em um só território, marcado por um passado de guerras e opressão, o Sudão mergulha no mais vergonhoso combate civil e a pior crise do mundo contemporâneo
Voltando no tempo, é possível identificar um histórico de conflitos sudaneses. Primeiro a dominação árabe no século VII, que deixou marcas profundas. Depois, a escravidão promovida pelos europeus, no contexto das colonizações do século XVI, seguido da unificação do território pelo Egito (1820-1822). Por fim, o imperialismo britânico, que deixou como herança a união de territórios absolutamente diferentes em uma única nação. Isso explica por que a conquista da independência em 1956 e a autonomia não se tornou sinônimo de paz. Ao contrário, os anos de luta e dominações avolumaram a incapacidade de convivência harmoniosa entre as tribos da região. Assim, na década de 1960, a esperança na autonomia foi substituída por uma longa e sangrenta guerra civil.
O número expressivo de mortes e o tempo de conflito levam a afirmação de que o que está acontecendo no Sudão, que na antiguidade era denominado País do Ouro, é genocídio. E o governo do presidente da República do Sudão Omar Hasan Ahmad al-Bashir justifica sua atitude como jhihad, ou seja, uma guerra santa contra os infiéis. Enquanto isso, parcelas minoritárias da população de origem cristã, animistas ou outros grupos não muçulmanos são dizimados pela guerra étnica e pela fome. Mas apesar dos atentados à população civil, Omar al-Bashir acaba de ser reeleito, mesmo sob ordem de prisão pelo Tribunal Penal Internacional de Haia e denúncias de fraude no pleito, com 68% dos votos.
O estopim do confronto foi a introdução da sharia (lei islâmica) em todo o território sudanês. Isso desagradou o sul do país, habitado por cristãos e animistas, que se revoltou contra o norte, de maioria muçulmana, e procura a separação do restante do país. O governo, localizado no norte, não aceita a separação, uma vez que as riquezas naturais do país, como o petróleo, se encontram no sul do Sudão.